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Autismo e Cultura Pop

Para o que nos interessa, a história começa em um café com uma colega de trabalho em um domingo de sol, na orla norte de Porto Seguro. Marcamos em uma lanchonete perto de casa e eu, distraidamente, coloquei minhas coisas (celular, chave do carro, carteira) sobre a mesa. Acontece que eu havia inserido uma fita de girassóis no chaveiro com as chaves do carro e me não prestei atenção ao fato. Até o momento, vivia há anos com o diagnóstico na gaveta e há meses com o laudo no bolso, em segredo. Tudo o que importa para esta história é que em determinado ponto da conversa, ela apontou para o meu chaveiro e perguntou: você é autista?

Eu não sabia como responder, nem o que esperar, mas a reação dela me surpreendeu. Aprendi, desde então, que as pessoas geralmente são sinceras sobre suas expectativas em relação ao autismo.

"É tão estranho que vocês sintam a necessidade de esconder essa parte de todo o mundo," ela disse. A conversa fluiu, ela entendeu meu pedido para guardar segredo no trabalho por enquanto e quando voltei para casa, me peguei pensando em como seria a reação das pessoas quando eu decidisse tirar a máscara de Neurotípico. Entrei online para saber as histórias de quem passou por isso e encontrei a seguinte frase:
"O autismo é meio que a síndrome da moda agora."

É aqui que o texto começa. Com uma pausa, procurando uma maneira melhor de dizer isso, porque aquela frase me chocou e eu demorei tentando entender a ideia de como alguém pode ser capaz de dizer que uma condição neurológica possa ser moda. Veio o estalo e me toquei que o TEA é visto como algo "fofo" pela cultura pop.

Eu não tinha certeza de como reagir a isso. Ainda agora essa ideia flutua em minha mente e ainda tenho sentimentos mistos.
Me incomoda que as pessoas possam diminuir as lutas das famílias e das pessoas com distúrbio do neurodesenvolvimento, considerando-o uma "moda". É ridiculo, mas eu imagino pessoas correndo para psicólogos de grife para obter seu diagnóstico de grife. É claro, gosto de estar na moda: vestia calças xadrez na adolescência em 1992, por exemplo. O simples fato é que eu, enquanto professor, acredito que é preciso lutar contra a forma como o público percebe este distúrbio e como ele é retratado na cultura pop, porque isso influencia profundamente a reação dos neurotípicos em relação a pessoas neuroatípicas , quer saibam nossas identidades ou não.
Até porqu quem conhece uma pessoa autista, conhece somente uma pessoa autista. Existe ela, com todas as suas características e nuances pessoais e existe eu, com todas as minhas nuances e características pessoais, e existe a ideia flutuante do que é o autismo e como ele se parece, e os três parecem impossíveis de separar.

O autismo e cultura pop


têm tido uma relação complicada por um longo tempo. Em 1988, o filme Rain Man introduziu o TEA ao público em geral. Após seu lançamento, os diagnósticos nos Estados Unidos dispararam, assim como a presença de personagens autistas na cultura pop.
Nos anos 1980, havia apenas dois filmes estrelando personagens autistas e na década seguinte, houve treze. Quanto mais antigo o filme ou livro ou programa, menos autistas os personagens parecem ser; alguns carregam o rótulo de 'autista', mas com muito poucos sintomas. Em vez disso, os personagens são afligidos por algum distúrbio mental genérico, que quando rotulado como autismo vende mais ingressos.

Rain Man e Além

Rain Man, no entanto, foi nuançado. Eu sempre apreciei a história, em um nível pessoal, o que não necessariamente era algo bom. O filme conta uma história ambientada em uma época em que a maneira comum de lidar com uma pessoa diagnosticada era enviá-la para a internação em uma instituição. Os cineastas mostram a instituição como um lugar acolhedor, seguro e confortável para o personagem Ray, mas na vida real esses lugares muitas vezes eram mal administrados e mantidos em condições péssimas. Um Ray da vida real possivelmente teria tido sua deficiência intensificada por estar em um lugar assim. Muitas crianças autistas nascidas nessa época cresceram com deficiências mentais severas porque pouco de sua natureza foi compreendida. O ator Dustin Hoffman mostrou imenso respeito em sua performance, pintando um personagem multifacetado de forma humana, mas devido ao seu lugar no espectro, ele é frequentemente um incômodo para a história, ou pior, um veículo apenas para mover a trama adiante. Não quero criticar Rain Man, que considero um grande primeiro passo para apresentar o autismo para o público, mas é que ele foi apenas isso; o primeiro passo.

Personagens Autistas na TV

Hoje, personagens autistas parecem estar aparecendo em toda parte. Muitas obras de ficção apresentam personagens, principais e secundários, no espectro. Sua presença na televisão, no cinema, no palco e na literatura mantém o TEA em evidência e é algo relevante para a vida daqueles não afetados. Devo dizer que foco principalmente em personagens de televisão para este desabafo, porque as horas de narrativa oferecem a oportunidade de pintar as imagens mais complexas dessas pessoas, e porque somos uma sociedade que tem uma televisão em cada casa e que faz uso de outras telas para assistir a seus programas. De muitas maneiras, quando assistimos a esses programas, os recebemos em nossas salas de estar e passamos a viver com esses personagens.

Alguns desses personagens são notáveis. Em Parenthood, o jovem Max Braverman é diagnosticado no primeiro episódio. O programa não é necessariamente sobre Max, mesmo quando conta uma das histórias de Max, mas é um tratamento tão honesto e justo do personagem quanto possível. Max parece real, como uma pessoa. A história de Max espelha tanto algumas de minhas próprias experiências com o diagnóstico que às vezes é um pouco doloroso assistir, e eu acabei não acompanhando a série. Soube recentemente que o criador do programa, Jason Katims, escreveu a partir de sua própria vida, seu filho sendo diagnosticado com Asperger, e a perspectiva do programa do pai observando o autismo de longe é clara. Katims trabalhou muito para criar um personagem autista realist e contou com a ajuda de um psicólogo comportamental. Por causa disso, quase todas as histórias de Max giram em torno de seu autismo e suas lutas para se conectar com seus colegas. Quando ele finalmente faz amigos, eles também lutam com suas próprias deficiências. Por mais real que ele pareça, ainda é impossível colorir Max como uma pessoa completamente real, porque sua identidade está totalmente envolvida com o diagnóstico.
Nada parece acontecer com ele em que o Asperger não esteja no centro. Embora eu queira criticar o programa por adotar uma abordagem um tanto médica ao autismo de Max Braverman, em vez de um ângulo experiencial ou pessoal, não posso completamente. Assistir ao pai de Max lutando para se conectar com seu filho indisciplinado durante uma aventura em um parque temático me fez pensar em meu próprio relacionamento com meus pais, o quanto eu dei trabalho crescendo. Max parece real e sincero, e em uma era em que todos ainda estão descobrindo como lidar com essas questões, isso parece suficiente.

Outro ponto de narrativa que preciso mencionar é o personagem de Abed em Community. Enquanto o personagem luta com convenções sociais, ele também é, como outro personagem o coloca, um xamã. Sua alta inteligência não é retratada como se ele fosse um savant, simplesmente um cara inteligente. Ele é autoconsciente, consciente da câmera, consciente da maneira como o mundo do programa funciona, de uma forma que nenhum dos outros personagens é. Mais importante para mim, ele tem um grupo de amigos forte, unido e solidário. A maior adversidade que Abed enfrenta vem da forma como o mundo reage às suas peculiaridades.
Em um episódio crucial, seus colegas descobrem que uma garota gosta dele e aproveitam a oportunidade, agindo como se fosse raro ou especial uma garota se interessar por alguém como ele. Eles tentam forçá-lo a sair de sua zona de conforto para falar com essa garota, enquanto fazem comentários que, sem saber, podem ser prejudiciais para alguém no espectro, como "Você pode nunca ter outra oportunidade [para uma vida normal] como esta!" Eles tentam treiná-lo, consertá-lo.
Durante todo o tempo, Abed vai junto com seus amigos, sem protestar ou expressar desconforto. A narrativa conclui com a realização de que Abed sabe o que está fazendo. Ele está ciente do charme sutil de sua esquisitice, e que realmente, ele apenas prefere que as garotas venham até ele. Eu não tinha visto um personagem autista retratado com tanta competência e humanidade desde Abed.

Simultaneamente, temos narrativas de programas como The Big Bang Theory, que era uma febre nos meus tempos de graduação no IFUSP, mas que abandonei por volta da sexta temporada. Recentemente, retomei e consegui assistir a todos os episódios que faltavam. Reconheço que é um programa querido e repleto de personagens , mas eu não consigo me identificar com isso.
Na faculdade, muitos colegas gostavam de imitar e se comparar ao personagem mais típico, Sheldon. Eu me irritava com isso, e demorei muito para entender por quê. Não é que a representação de Sheldon seja injusta para o autismo - é uma paródia, ele é uma versão exagerada de uma pessoa real, interpretada para risos. E eu acredito firmemente que é aceitável rir com o autismo, mas não da pessoa autista.
O problema aqui são seus pares. Em um programa onde os nerds costumam ser alvo de piadas (falando sério, tente assistir a um episodio de TBBT sem som, somente as legendas. Sem a trilha sonora de risadas, o show é cruel), Sheldon está no fundo do poço. Seus amigos não o suportam, mal conseguem lidar com ele.
Você pode sentir um desgosto palpável por suas palhaçadas em suas vozes, de modo sutil para não chamar a atenção dele. Isso traz de volta memórias de interações ruins que presenciei com pessoas neurotípicas menos compreensivas, que não se importam em rir dos sintomas de uma pessoa real.
Claro, é possível descartar TBBT como apenas um programa de televisão, mas o problema é que esse pedaço proeminente de mídia define uma cultura, define as expectativas das pessoas umas com as outras, e define como devemos e não devemos reagir entre nós.
De acordo com The Big Bang Theory, pessoas autistas são insuportáveis e intoleráveis, e devem ser tratadas com hostilidade e desprezo sutis.

Há muitos exemplos de personagens autistas ruins por aí, muitos dos quais não sinto necessidade de listar. Eles sugerem imagens falsas e irrealistas do autismo, sugerem que as pessoas autistas são definidas por sua deficiência, e não o contrário.
São personagens que sugerem que as pessoas autistas só podem se conectar entre si e só podem encontrar amor com outras pessoas "estranhas", porque são muito estranhas para que qualquer outra pessoa se interesse por elas. Personagens gritam e brigam uns com os outros quando alguém sugere que seu ente querido tem autismo, como se fosse uma acusação horrível.
O problema com a maioria das representações da mídia sobre o autismo não é que seja injustamente estereotipado, é que geralmente é muito simpático, em oposição a empático, e através disso alimenta os tropos problemáticos e as ansiedades da sociedade sobre o autismo: "o personagem autista está tentando, veja o quanto ele está tentando" ou "o personagem autista quer se encaixar, mas não pode e nunca vai conseguir por causa do autismo. Você não se sente triste? Você não sente pena dele?".
Dessa perspectiva, a cultura pop é compassiva e solidária, mas nos diminui, nos faz parecer fracos e necessitados de caridade.

Não estamos à mercê de nosso rótulo, assim não é como o mundo precisa olhar para o autismo. O rótulo é definido por aqueles que vivem sob ele, e não o contrário. Todos os personagens, não apenas aqueles com autismo, precisam ser retratados com empatia, não com simpatia.
Personagens autistas precisam ser mostrados fora da luz de seu transtorno, de uma maneira tão complicada e matizada quanto os personagens neurotípicos são escritos. Não se deve consultar médicos e especialistas no transtorno para entender essas pessoas, os autores devem consultar as pessoas reais que vivem com o diagnóstico. É assim que a audiência irá amar um personagem. É assim que o enredo os torna pessoas reais.

Se você quer ver essa mudança, e está envolvido com o mundo criativo, fica facil: se você escreve, escreva personagens autistas como gostaria que fossem retratados. Se você atua, preencha papéis autistas, da mesma forma que Hollywood deveria escalar atores paquistaneses para papéis paquistaneses e papéis trans para pessoas trans.
Simplificando, represente sua gente. Já temos ótimos exemplos disso, embora, em minha própria experiência, esses tenham sido casos minoritários. Mas eles existem.

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